quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Evangelho Segundo Felipe


UM HEBREU faz um hebreu e [o] chama desta maneira: "prosélito". Mas um prosélito não faz outro prosélito: [alguns] são como [...] e criam outros: [outros, todavia] se satisfazem com o fato de chegar a existir.
2    O [escravo] apenas aspira a ser livre e não ambiciona os bens do seu senhor; mas o filho não é só filho: reclama para si a herança do pai.
3    Os que herdam dos mortos estão eles mesmos mortos e são herdeiros de mortos. Os que herdam dos vivos vivem eles próprios e são herdeiros de quem está vivo e de quem está morto. Os mortos não herdam de ninguém, pois como pode herdar quem está morto? Se o morto herda de quem está vivo, não morrerá. Antes, viverá com maior razão.
4    Um homem pagão não morre, pois em verdade não viveu nunca, para que logo [possa] morrer. Aquele que chegou a ter fé na verdade, esse encontrou a vida e corre perigo de morrer, pois mantém-se vivo.
5    A partir da vinda de Cristo, o mundo é criado, as cidades tomam-se belas e desaparece tudo que havia fenecido.
6    Enquanto éramos hebreus, estávamos órfãos; apenas possuíamos nossa
mãe. Mas ao fazer-nos cristãos, surgiram para nós um pai e uma mãe.
7    Os que semeiam no inverno colhem no verão. O inverno é o mundo; o verão é o outro éon. Semeemos o mundo para que possamos colher no verão! Ao inverno sucede o verão; mas quem se empenha em colher no inverno, não terá colheita, terá de arrancar.
8    Da mesma maneira que alguém como esse, ele [não] produzirá fruto; e não só isso [...]: também no outro Sábado permanece [...] estéril.
9    Cristo veio para resgatar alguns, para salvar outros e redimir outros. Ele resgatou os forasteiros e os fez seus. Ele segregou os seus, penhorando-os segundo sua vontade. Ao manifestar-se, não só se desprendeu da lama quando lhe aprouve, como também, desde o dia em que o mundo teve sua origem, a manteve deposta. Quando quis veio recuperá-la, já que ela havia sido penhorada; havia caído em mãos de ladrões e feita prisioneira. Mas Ele a libertou, resgatando os bons que havia no mundo e os maus.
10    A luz e as trevas, a vida e a morte, os da direita e os da esquerda são irmãos entre si, sendo impossível separar uns dos outros. Por isso nem os bons são bons, nem os maus são maus, nem a vida é vida, nem a morte é morte. Assim é que cada um virá a dissolver-se em sua própria origem desde o princípio; mas os que estão além do mundo são indissolúveis e eternos.
11    Os nomes que se dão às vibrações do mundo são susceptíveis de um grande equívoco, pois distraem a atenção do estável para o instável. E, assim, quem ouve (a palavra) "Deus" entende não o estável, mas o instável. O mesmo ocorre com o "Pai", o "Filho", o "Espírito Santo", a "Vida", e "Luz", a "Ressurreição", a "Igreja" e tantos outros; não se entendem os conceitos estáveis, mas sim os instáveis, a não ser que se conheçam de antemão os primeiros. Estes estão no mundo [...]; se estivessem no éon nunca seriam citados no mundo nem estariam entre as coisas ter-renas; eles têm seu fim no éon.
12    Só há um nome que não se pronuncia no mundo: o nome que o Pai deu ao Filho. E superior a tudo. Trata-se do nome do Pai, pois o Filho não chegaria a ser Pai se não se houvesse apropriado do nome do Pai. Quem está de posse desse nome o entende, mas não fala dele; mas os que não estão de posse dele não o entendem. A verdade criou diferentes nomes neste mundo, porque sem eles é de todo impossível apreendê-la. A verdade é única e múltipla por nossa causa, para ensinar-nos, através de muitos este único nome por amor.
13    Os Archontes quiseram enganar o homem, vendo que ele tinha parentesco com os verdadeiramente bons: tiraram o nome dos que são bons e o deram aos que não são bons, com o fito de enganar por meio dos nomes e vinculá-lo aos que não são bons. Logo — no caso de que queiram prestar-lhes um favor — farão que se separem dos que não são bons e os integrarão entre os que são bons, que eles conheciam de antes. Pois eles pretendiam raptar o que é livre e fazê-lo seu escravo para sempre.
14    Há Potências que [são] outorgadas ao homem [...], pois não quer que este [chegue a salvar-se] para que elas consigam ser [...]; pois se o homem [se salva], fazem-se sacrifícios [...] e se oferecem animais às Potências. [E a estas] que se fazem tais oferendas, (que) no momento de ser ofertadas estavam vivas, mas ao ser sacrifica das morreram. O homem, de sua parte, foi oferecido a Deus em estado de morte e viveu.
15    Antes da vinda de Cristo não havia pão no mundo. O mesmo sucedia no paraíso — lugar em que morava Adão — havia aí muitas árvores para alimento dos animais, mas não havia trigo para alimentar o homem. &te nutria-se como os animais. Mas Cristo — o perfeito — ao vir, trouxe pão do céu para que o homem se alimentasse com alimento de homem.
16    Os Archontes acreditavam que por sua força e por sua vontade faziam o que faziam; mas era o Espírito Santo que operava ocultamente em tudo, através deles, segundo sua vontade. Eles semeiam por toda parte a verdade, que existe desde o princípio, e muitos a contemplam ao ser semeada; mas poucos dos que a contemplam a colhem.
17    Alguns dizem que Maria concebeu por obra do Espírito Santo. Fases se equivocam, não sabem o que dizem. Quando alguma vez uma mulher foi concebida de uma mulher? Maria é a virgem a quem Potência alguma jamais manchou. Ela é um grande anátema para os judeus que são os apóstolos e os apostólicos. &ta Virgem que nenhuma Potência violou, [... enquanto que] as Potências se contaminaram. O Senhor não [teria] dito: "Pai meu que estás nos céus", se não tivesse outro pai; do contrário haveria dito simplesmente: "[Pai meu]".
18    O Senhor disse a seus discípulos: [...] "Entrai na casa do Pai, mas não tomeis nem leveis nada da casa do Pai".
19    "Jesus" é um nome secreto, "Cristo" é um nome público. Por isso "Jesus" não existe em língua alguma, apenas seu nome é "Jesus", como geral-mente é chamado. "Cristo", todavia — pelo que diz respeito ao seu nome em siríaco —, é Messias, do mesmo modo que em grego e em outras línguas, com as necessárias adequações. "O Nazareno" é [o nome] que está manifestado no oculto.
20    Cristo encerra tudo em si mesmo — seja "homem", seja "anjo", seja "mistério" —, incluindo o Pai.
Os que dizem que o Senhor primeiro morreu e depois ressuscitou, enganam-se, pois primeiro ressuscitou e depois morreu. Se alguém não consegue primeiro a ressurreição não morrerá; tão verdade quanto Deus vive, este [morrerá].
22    Ninguém esconde um objeto grande e precioso em um recipiente grande, mas muitas vezes se guardam tesouros sem conta em um cofre que não vale mais do que um maravedi. Isso ocorre com a alma: é um objeto precioso que veio cair em um corpo desprezível.
23    Há os que têm medo de ressuscitar nus e por isso querem ressuscitar em carne. Estes não sabem que os que estão revestidos de carne são os nus. Aqueles que [ousam] desnudar-se são precisamente [os que] não estão nus. "Nem a carne [nem o sangue] herdarão o reino [de Deus]". Qual é a [carne] que não vai herdar? A que usamos por cima de nós. E qual, ao contrário, é a carne que herdará? A [carne] de Jesus e seu sangue. Por isso disse Ele: "Aquele que não come minha carne e não bebe meu sangue não tem vida em si." E que é isso? Sua carne é o Logos [verbo] e seu sangue é o Espírito Santo. Quem recebeu tais coisas possui alimento, bebida e roupa. Eu recrimino os outros que afirmam que [a carne] não vai ressuscitar, pois uns e outros estão errados. Tu dizes que a carne não ressuscitará. Diz-me então o que é que vai ressuscitar, para que possamos aplaudir-te. Tu dizes que o Espírito [está] dentro da carne e que também esta luz está dentro da carne. Mas o Logos é esse outro que também está dentro da carne, pois — qualquer das coisas a que te refiras — nada poderás aduzir que se encontre fora do interior da carne. E, pois, necessário ressuscitar nesta a carne, já que nela tudo está contido.
24    Neste mundo, aqueles que vestem uma roupa valem mais do que a própria roupa. No reino dos céus, [todavia,] valem mais as roupas que
aqueles que as vestem, pois são de água e fogo, que a tudo purificam.
25    Os que estão manifestados [o estão] graças aos que estão manifestados e os que estão ocultos o estão graças aos que estão ocultos. Há quem [se mantém] oculto graças aos que estão manifestados. Há água na água e fogo na unção.
26    Jesus ocultou-se de todos, pois não se manifestou como era integralmente, e sim dentro das possibilidades de cada um. Assim é que apareceu [o..] grande aos grandes, pequeno aos pequenos, como anjo aos anjos e como homem aos homens. Por isso seu Logos se manteve oculto a todos. Alguns o viram e acreditavam que se viam a si mesmos; mas quando se manifestou gloriosa-mente aos seus discípulos sobre a montanha, não era peque-no: se havia feito grande e fez grandes seus discípulos para que estivessem em condições de vê-lo grande [a Ele mesmo]. E disse naquele dia na ação de graças: "Tu que uniste o perfeito e a luz com o Espírito Santo, une também os anjos conosco, com as imagens".
27    Não desprezeis o Cordeiro, pois sem ele não é possível ver o rei. Ninguém poderá pôr-se a caminho para o rei estando nu.
28    Mais numerosos são os filhos do homem celestial que os do homem terreno. Se são numerosos os filhos de Adão — apesar de mortais — quanto mais os filhos do homem perfeito, que não só não morrem como são engendrados ininterruptamente.
29    O pai faz um filho e o filho não tem possibilidade de fazer por sua ver um filho: pois quem foi engendrado não pode engendrar, e o filho procura ir-mãos, não filhos.
30    Todos os que são engendrados no mundo são engendrados pela natureza, o resto pelo [espírito]. Os que são engendrados por este [dão gritos] ao homem daqui de baixo [para...] da promessa [...] de cima.
31    [Aquele que...] pela boca; [se] o Logos tivesse saído dali se alimentaria pela boca e seria perfeito. Os perfeitos são fecundados por um beijo e engendram. Por isso nós nos beijamos uns aos outros [e] recebemos fecundação pela graça que nos é comum.
32    Três [eram as que] caminhavam continuamente com o Senhor: sua mãe Maria, a irmã desta e Madalena, a quem se designa como sua companheira. Maria é, de fato, sua irmã, sua mãe e companheira.
33    "Pai" e "Filho" são nomes simples; "Espírito Santo" é um nome composto. Aqueles se encontram em toda parte: acima, abaixo, no oculto e no manifestado. O Espírito Santo está no revelado, abaixo, acima, oculto.
34    As Potências malignas estão ao serviço dos santos, depois de haverem sido reduzidas à cegueira pelo Espírito Santo, para que cressem que serviam a um homem e que assim estariam atuando em favor dos santos. Por isso [quando] um dia um discípulo pediu ao Senhor uma coisa do mundo — Ele lhe disse: "Pede a tua mãe e ela te fará partícipe das coisas alheias".
35    Os apóstolos disseram a seus discípulos: "Que toda nossa oferenda procure sal ela própria." Eles designavam por "sal" a [a Sofia], pois sem ela nenhuma oferenda é aceitável.
36    A Sofia é estéril, [sem] filhos, por isso [também] é chamada de "sal". No lugar em que aqueles [...] à sua maneira [é] o Espírito Santo; [por isso] são numerosos seus filhos.
37    O que o Pai possui pertence ao filho, mas enquanto este é pequeno não se lhe confia o que é seu. Quando se faz homem, então dá-lhe o pai tudo quanto possui.
38    Quando os engendrados pelo espírito erram, erram também por ele. Pela mesma razão um mesmo sopro atiça o fogo e o apaga.
39    Uma coisa é "Echamoth", outra é "Echmoth". Echamoth é a Sofia por antomásia, enquanto que Echmoth é a Sofia da morte, aquela que conhece a morte, a quem chamam "Sofia a pequena".
40    Há animais que vivem submetidos ao homem, tais como as vacas, o burro e outros semelhantes. Há outros, todavia, que não se submetem e vivem sozinhos, em paragens desertas. O homem ara o campo com animais domésticos e assim se alimenta a si mesmo e aos animais, tanto aos que se submetem como aos que não se submetem. O mesmo se passa com o homem perfeito: com [a ajuda das] Potências que lhe são dóceis, ara [e] cuida para que todos subsistam. Por isso mantém o equilíbrio, quer se trate dos bons, quer dos maus, dos que estão à direita e dos que estão à esquerda. O Espírito Santo apascenta a todos e exerce seu domínio sobre [todas] as Potências, tanto sobre as dóceis quanto sobre as [indóceis] e solitárias, pois ele [...] as prende para que [...] quando queiram.
41    [Se Adão] foi criado [...], estarás de acordo em que seus filhos são obras nobres. Se ele não houvesse sido criado, mas sim engendrado, estarias também de acordo em que sua posteridade é nobre. Pois bem, ele foi criado e [por sua vez] engendrou. Que nobreza isto pressupõe!
42    Primeiro houve adultério e depois [veio] o assassino engendrado no adultério, pois era o filho da serpente. Por isso se tomou homicida como seu pai e matou seu irmão. Pois bem, toda relação sexual entre seres não semelhantes entre si é adultério.
43    Deus é tintureiro. Assim como a boa tinta — chamada de "autêntica"
— só desaparece quando as coisas que com ela são tingidas se corrompem, o mesmo ocorre com aqueles a quem Deus tingiu: posto que sua tinta é imperecível, graças a ela eles mesmos se tomam imortais. Pois bem, Deus batiza os que batiza com água.
44    Ninguém pode ver quem quer que seja estável a não ser que ele mesmo se assemelhe ao estável. Com a verdade não ocorre o mesmo que com o homem enquanto se encontra neste mundo, pois ele vê o sol sem ser o sol e contempla o céu e a terra e todas as outras coisas sem serem elas mesmas. Tu, ao contrário, viste algo daquele lugar e te converteste naquelas coisas que havias visto: viste o espírito e te fizeste espírito; viste Cristo e te fizeste Cristo; viste [o Pai] e te fizeste pai. Por isso,tu [aqui] vês todas as coisas e não [te vês] a ti próprio; mas [ali], sim, te verás, pois [chegarás a ser] o que estás vendo.
45    A fé recebe, o amor dá. [Ninguém pode receber] sem a fé; ninguém pode dar sem amor. Por isso creiamos, para poder receber; mas, para poder dar de verdade [temos de amar também]; pois se alguém dá, mas não por amor, não tira utilidade alguma do que deu.
46 Os apóstolos, antes de nós, o chamaram assim: "Jesus o Nazareno, Messias" — que quer dizer "Jesus o Nazareno, o Cristo". O último nome é "O Cristo"; o primeiro, "Jesus"; o do meio é o "o Nazareno". "Messias" tem um duplo significado: "o Cristo" e "o Medido". "Jesus", em hebraico, é "a Redenção. O Cristo foi medido: o Nazareno e o Jesus são os que foram medidos.
48 Se se atira a pérola ao monturo, nem por isso ela perde seu valor. Tampouco se faz mais preciosa ao ser tratada com ungüento de bálsamo, mas aos olhos do proprietário conserva sempre o seu valor. O mesmo ocorre com os filhos de Deus onde quer que estejam, pois conservam sempre seu valor aos olhos do Pai.
49    Se dizes "sou judeu", ninguém se inquietará; se dizes "sou grego", bárbaro, escravo ou livre, ninguém se perturbará. [Mas se dizes] "sou cristão", [todo mundo] começará a tremer. Oxalá possa eu [...] este signo que E...1 não são capazes de suportar [...] esta denominação!
50    Deus é antropófago, por isso se lhe [oferece] o homem [em sacrifício]. Antes que o homem fosse imolado se imolavam animais, pois não eram deuses aqueles a quem se faziam sacrifícios.
51    Tanto as vasilhas de vidro como as de argila se fazem à base de fogo. As de vidro podem ser remodeladas se se rompem, pois foram fabricadas por um sopro. As de argila, ao contrário, se se rompem ficam destruídas definitivamente, pois nenhum sopro interveio em sua fabricação.
52    Um asno, dando voltas em tomo de uma roda de moinho, caminhou cem milhas, e quando o desjungiram ainda se encontrava no mesmo lugar. Existem homens que fazem muito caminho sem se mover um passo em direção alguma. Ao se verem surpreendidos pelo crepúsculo não chegaram a divisar cidades, nem aldeias, nem criaturas, nem natureza, nem potência ou anjo. Em vão se esforçaram, os pobres!
53    A Eucaristia é Jesus, pois a este se chama em siríaco "Pharisata", que quer dizer "aquele que está estendido" o Jesus veio, realmente, a crucificar o mundo.
54    O Senhor foi à tinturaria de Levi, tomou setenta e duas cores e atirou-as na tina. Depois tirou-as todas tingidas de branco e disse: "Assim foi que as tomou o filho do filho do homem [...].
55    A Sofia — a quem chamam "a estéril" — é a mãe dos anjos: a companheira [de Cristo é Maria] Madalena. [O Senhor amava Maria] mais do que a todos os discípulos [e] a beijou na [boca repetidas] vezes. O~ demais [...] lhe disseram: Par que a queres mais que a todos nós"? O Salvador respondeu c lhes disse: "A que se deve isso que não vos quero tanto quanto a ela"?
56    Um cego e um que vê-se se encontrarem ambos às escuras — não se distinguem um do outro; mas quando chegarem à luz o que vê será a luz enquanto que o cego permanecerá na obscuridade.
57    Disse o Senhor: "Bem-aventurado é aquele que é antes de chegar a existir, pois c que é, era e será".
58    A superioridade do homem não é patente e sim oculta. Por isso domina as besta que são mais fortes do que ele e de grande tamanho — tanto na aparência quanto na realidade — e proporciona-lhes subsistência. Mas quando w deixa, elas se matam umas às outras e se mordem até devorar-se mutuamente por não achar o que comer. Mas agora — uma vez que o homem trabalhou a terra — encontraram seu sustento.
59    Se alguém - depois de baixadas as águas — sai dela; sem nada haver recebido e diz "sou cristão", [somente] ter recebido este nome de empréstimo. Mas, se recebe o Espírito Santo, fica de posse do (citado) nome a título de doação. Nada se tira de quem recebeu um presente, mas reclama-se a devolução do empréstimo a quem o recebeu.
60    O mesmo ocorre quando alguém foi [...] em um mistério. O mistério do matrimônio [é] grande, pois [sem ele] o mundo não existiria. A consistência [do mundo depende do homem], a consistência [do homem depende do] matrimônio. Reparai na união [sem mancha]. pois tem [um grande] poder. Sua imagem está vinculada à poluição [corporal].
61    Entre os espíritos impuros existem machos e fêmeas. Os machos são aqueles que copulam com as almas que estão alojadas em uma figura feminina. As fêmeas, ao contrário, são aquelas que estão unidas com os que se abrigam em um figura masculina por culpa de uma desobediente. E ninguém poderá fugir desses espíritos se cair em poder deles, a não ser que seja dotado simultaneamente de uma força masculina e outra feminina — isto é, esposo e esposa — provenientes da câmara nupcial em imagem. Quando as mulheres néscias descobrem um homem solitário lançam-se sobre ele, gracejam com ele e o mancham. O mesmo ocorre com os homens néscios: se descobrem um mulher formosa que vive só procuram insinuar-se e até forçá-la, com o fito de violá-la. Mas se vêem que homem e mulher vivem juntos, nem as fêmeas podem aproximar-se do macho nem os machos das fêmeas. O mesmo acontece se a imagem e o anjo estão unidos entre si: ninguém se atreverá tampouco a se acercar do homem ou da mulher. Aquele que sai do mundo não pode cair preso pela simples razão de que [já] esteve no mundo. Está claro que este é superior à concupiscência [...e ao] medo; é senhor de seus [...] e mais freqüente que os ciúmes. Mas se [se trata de...], prendem-no e o sufocam, e como poderá [este] fugir de [...] e pôr-se em condições de [...]? [Com freqüência vêm] alguns [e dizem] "nós somos crentes", [a fim de escapar de...e] demônios.
Se estes tivessem estado de posse do Espírito Santo, nenhum espírito imundo teria aderido a eles.
62    Não tenhas medo da carne nem a ames: se a temeres, assenhorear-se-á de ti; se a amares, te devorará e entorpecerá.
63    Ou se está neste mundo, ou na ressurreição, ou em locais intermediários. Queira Deus que a mim não me encontrem nestes! Neste mundo há coisas boas e coisas más. Mas há algo mau depois deste mundo que é na verdade pior e que chamam o "Intermédio", que dizer, a morte. Enquanto estivermos neste mundo é conveniente que nos esforcemos por conseguir a ressurreição, para que — uma vez que deponhamos a carne nos achemos no descanso e não tenhamos de ir errando no "Intermédio". Muitos, realmente, erram o caminho. E, pois, conveniente sair deste mundo antes que o homem haja pecado.
64    Alguns nem querem nem podem; outros, ainda que queiram, de nada lhes serve por não terem feito. De maneira que um [simples] "querer" os faz pecadores, do mesmo modo que um "não querer". A justiça se esconderá de ambos. O "querer" [é...], o "fazer", não.
65    Um discípulo dos apóstolos viu em uma visão algumas [pessoas] encerradas em uma casa em chamas, acorrentadas com grilhões de fogo e atiradas [em um mar] de fogo. [E diziam...] água sobre [...]. Mas estes replicavam que — muito contra sua vontade — [não] estavam em condições de [as] salvar. Eles receberam [a morte como] castigo, aquela que chamam de "treva [exterior]" por [ter sua origem] na água e no fogo.
66    A [alma] e o espírito chegaram à existência partindo de água, fogo e luz [por mediação] do filho da câmara nupcial. O fogo é a unção, a luz é o fogo; não estou falando desse fogo que não possui forma alguma, mas do outro cuja forma é branca, que é refulgente e belo e irradia [por sua vez] formosura.
67    A verdade não veio nua a este mundo, mas envolta em símbolos e imagens, já que de outra maneira não poderia ser recebida. Há uma regeneração e uma imagem de regeneração. E na verdade necessário que se renasça através da imagem. Que é a ressurreição? E preciso que a imagem ressuscite pela imagem; é preciso que a câmara nupcial e a imagem através da imagem entrem na verdade que é a restauração final. E conveniente [tudo isto] para aqueles que não apenas recebem, mas que fizeram seu por méritos próprios o nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Se uma pessoa não os obtém por si mesma, até o próprio nome lhe será arrebatado. Pois bem, esses nomes se conferem na unção com o bálsamo da força E...1 que os apóstolos chamavam "a direita" e "a esquerda". Pois alguém assim não é mais um [simples] cristão, mas um Cristo.
68    O Senhor [realizou] todo um mistério: um batismo, uma unção, uma eucaristia, uma redenção e uma câmara nupcial.
69    [O Senhor] disse: "Vim fazer [as coisas inferiores] como as superiores [e as externas] como as [internas, para uni-las] todas no lugar". [Ele se manifestou aqui] através de símbolos [...]. Aqueles, pois, que dizem: "[...] há quem está em cima [...]", se enganam, [pois] o que se manifesta [...] é o que chamam o "de baixo" e o que possui o oculto está em cima dele. Com razão, pois se fala da "parte interior" e da "exterior" e "da que está fora da exterior". E assim o Senhor chamava a perdição de "treva exterior, fora da qual nada há". Ele disse: "Meu Pai que está escondido", e também: "Entra em tua habitação, fecha a porta e ora a teu Pai que está escondido", justo é, "o que está no interior de todos eles". Pois bem, o que está dentro deles é a Pleroma: mais interior do que ela não existe nada. Este é precisamente aquele de quem se diz: "Está por cima deles".
70    Antes de Cristo saíram alguns do lugar a que não haveriam de voltar a entrar e entraram no lugar de onde não haveriam de voltar a sair. Mas Cristo, com sua vinda, tirou para fora os que haviam entrado e pôs para dentro os que haviam saído.
71    Enquanto Eva estava [dentro de Adão; não existia a morte, mas quando se separou [dele] sobreveio a morte. Quando esta retomar e ele a aceitar, deixará de existir a morte.
72    "Deus meu! Deus meu! Por que Senhor, tanto me glorificas?" Isto disse Ele sobre a cruz depois de separar este Pai lugar [de tudo que] havia sido engendrado por [...] através de Deus. [O Senhor ressuscitou] de entre os mortos [...]. Mas seu corpo era perfeito: [tinha, sim,] uma carne, mas esta [era uma carne] de verdade. [Nossa carne, ao contrário], não é autêntica, [mas] uma imagem da verdadeira.
73    A câmara nupcial não é feita para as bestas nem para os escravos nem para as mulheres sem honra, e sim para os homens livres e para as virgens.
74    Em verdade, somos engendrados pelo Espírito Santo mas reengendrados por Cristo. Em ambos os [casos] somos também ungidos pelo espírito e — ao ser engendrados —, fomos unidos também.
75    Sem luz ninguém poderá contemplar-se a si mesmo, nem em uma superfície de água nem em um espelho; mas se não tens água ou espelho — ainda que tenhas luz —, tampouco poderás contemplar-te. Por isso é necessário batizar-se com duas coisas: com a luz e com a água. Pois bem, a luz é a unção.
76    Três eram os lugares em que se faziam oferendas em Jerusalém: um, que se abria para o Poente, chamado o "Santo"; outro, aberto para o Sul, chamado o "Santo do Santo", e o terceiro, aberto para o Oriente, chamado o "Santo dos Santos", por onde só podia entrar o Sumo Sacerdote. O batismo é o "Santo", [a redenção] é o "Santo do Santo", enquanto que a câmara nupcial é o "[Santo] dos Santos". [O batismo] traz consigo a ressurreição [e a] redenção, mas esta se realiza na câmara nupcial. Mas a câmara nupcial encontra-se na cúpula [de...]. Tu não serás capaz de encontrar [...] aqueles que fazem oração [...] Jerusalém [...] Jerusalém [...] Jerusalém [...] chamada
Santo dos Santos" [...] o véu [...] a câmara nupcial, mas sim a imagem [...]. Seu véu rasgou-se de alto a baixo, pois era preciso que alguns subissem de baixo para cima.
77    Aqueles que se vestiram da luz perfeita não podem ser vistos pelas Potências nem detidos por elas. Pois bem, podemos revestir-nos desta luz no sacramento, na união.
78    Se a mulher não se houvesse separado do homem,não teria morrido com ele. Sua separação tomou-se o começo da morte. Por isso veio Cristo, para anular a separação que existia desde o princípio, para unir a ambos e para dar a vida àqueles que haviam morrido na separação e uni-los de novo.
79    Pois bem, a mulher se une com o marido na câmara nupcial.
80    A alma de Adão chegou à existência por um sopro. Seu cônjuge é o [espírito; o espírito] que lhe foi dado é sua mãe [e com] a alma lhe foi outorgado [...] em seu lugar. Ao unir. se [pronunciou] algumas palavras que são superiores às Potências. Estas tiveram-lhe inveja [...] união espiritual [...].
81    Jesus manifestou [sua glória no] Jordão. A plenitude do reino dos céus, que [preexistia] ao Todo, nasceu ali de novo. O que antes [havia sido] ungido, foi ungido de novo. O que havia sido redimido, por sua vez
redimiu.
82    Digamos — se é permitido — um segredo: o Pai do Todo se uniu com a virgem que havia descido e um fogo o iluminou naquele dia. Ele deu a conhecer a grande câmara nupcial, e por isso seu corpo — que teve origem naquele dia — saiu da câmara nupcial como quem tivesse sido engendrado pelo esposo e a esposa. E também, graças a estes, encaminhou Jesus o Todo a ela, sendo preciso que todos e cada um dos seus discípulos entrem em seu lugar de repouso.
83    Adão deve sua origem a duas virgens, isto é, ao Espírito e à terra virgem. Por isso Cristo nasceu de uma Virgem, para reparar a queda que ocorreu no princípio.
84    Duas árvores há no [centro do] paraíso: uma produz [animais], outros homens. Adão [comeu] da árvore que produzia animais e se converteu ele próprio em animal e engendrou animais. Por isso os [filhos] de Adão adoram [os animais]. A árvore [cujo] fruto [Adão comeu] é [a árvore do conhecimento]. [Por] isso multiplicaram-se [os pecados]. [Se ele houvesse] comido [o fruto da outra árvore, quer dizer], o fruto da [árvore da vida, que] produz homens, [então os deuses adorariam] o homem. Deus fez [o homem] e o homem faria Deus.
85    O mesmo ocorre no mundo: os [homens] produzem deuses e adoram a obra de suas mãos. Seria conveniente que os deuses venerassem os homens, como corresponde à lógica.
86    As obras do homem provêm de sua potência: por isso são chamadas as "Potências". Obras suas são também seus filhos, procedentes de um repouso. Por isso sua potência se origina das suas obras, enquanto que o repouso se manifesta em seus filhos. E estarás de acordo em que isto diz respeito à [própria] imagem. Assim, pois, aquele é um homem modelo, que realiza sua obra por sua força mas engendra seus filhos no repouso.
87    Neste mundo os escravos servem aos livres; no reino dos céus, os livres servirão aos escravos, [e] os filhos da câmara nupcial aos filhos do matrimônio. Os filhos da câmara nupcial têm um nome [...]. O repouso [é comum] a ambos: não têm necessidade de [...].
88    A contemplação [...].
89    [... ] Cristo baixou à água [...] para redimi-la; [...] aqueles que Ele [... ] por seu nome. Pois Ele disse: "[E conveniente] que cumpramos tudo aquilo
que é justo".
90    Os que afirmam que primeiro é preciso morrer e depois ressuscitar se enganam. Se não se recebe primeiro a ressurreição em vida, nada se receberá ao morrer. Nestes termos se expressam também acerca do batismo, dizendo: "Grande coisa é o batismo, pois quem o recebe viverá".
91    O apóstolo Felipe disse: "José o carpinteiro plantou um viveiro porque necessitava de madeira para o seu oficio. Ele foi quem construiu a cruz com as árvores que havia plantado. Sua semente ficou aderida ao que ele havia plantado. Sua semente era Jesus, e a cruz, a árvore".
92    Mas a árvore da vida está no centro do paraíso, e também a oliveira, de que procede o óleo graças a qual [chegou-nos] a ressurreição.
93    Este mundo é necrófago: tudo que nele se come [se ama também]. A verdade, ao contrário, se nutre da vida, [por isso] nenhum dos que [dela] se alimentam morrerá. Jesus veio [do outro] lado e trouxe alimento [dali]. Aos que desejavam deu Ele [vida para que] não morressem.
94    [Deus plantou um] paraíso; o homem [viveu no] paraíso [o..]. Este paraíso [é o lugar onde me dirão: ["Homem, come] disto ou não comas [disto, conforme teu] desejo”. Esse é o lugar onde comerei de tudo, já que ali se encontra a árvore do conhecimento. Esta causou a morte de Adão e deu, ao invés, vida aos homens. A lei era a árvore: esta tem a propriedade de facilitar o conhecimento do bem e do mal, mas nem afastou [ao homem] do mal nem o confirmou no bem, senão que trouxe consigo a morte para todos aqueles que dela comeram. Pois ao dizer: "Comei isto, não comais isto", transformou-se em princípio da morte.
95    A unção é superior ao batismo, pois é por ela que recebemos o nome de cristãos, não pelo batismo. Também Cristo foi chamado assim pela unção, pois o Pai ungiu o Filho, o Filho aos apóstolos e estes nos ungiram a nós. Quem recebeu a unção está de posse do Todo: da ressurreição, da luz, da cruz e do Espírito Santo. O Pai outorgou-lhe tudo isso na câmara nupcial. O Pai [o] recebeu.
96    O Pai colocou sua morada no [Filho] e o Filho no Pai: isto é o reino dos céus.
97    Com razão disse o Senhor: "Alguns entraram sorrindo no reino dos céus e saíram [...]". Um cristão [...] e imediatamente [desceu] à água e subiu [sendo senhor do] Todo; [não] porque pensava que era uma zombaria, mas [porque] desprezava isto [como indigno do] reino [dos céus]. Se [o] despreza o toma como zombaria, [sairá dali] rindo.
98    O mesmo ocorre com o pão, o cálice e o óleo, se bem que haja outro [mistério] que é superior a este.
99    O mundo foi criado por culpa de uma transgressão, pois aquele que o criou queria fazê-lo imperecível e imortal mas caiu e não pôde realizar suas aspirações. De fato não havia incorruptibilidade nem para o mundo nem para quem o havia criado, já que incorruptíveis não são as coisas mas os filhos, e nenhuma coisa poderá ser perdurável a não ser que se faça filho, pois como poderá dar quem não está com disposição para receber?
100    O cálice da oração contém vinho e água, porque serve de símbolo do sangue, sobre o qual se faz a ação de graças. Está cheio do Espírito Santo e pertence ao homem inteiramente perfeito. Ao bebê-lo faremos nosso o homem perfeito.
101    A água é um corpo. É preciso que nos revistamos do homem vivente: por isso, quando nos dispomos a descer à água, temos de nos desnudar para podermos vestir-nos com ele.
102    Um cavalo engendra um cavalo, um homem engendra um homem e um deus engendra um deus. O mesmo ocorre com o esposo e [a esposa: seus filhos] tiveram sua origem na câmara nupcial. Não houve judeus [que descendessem] de gregos [enquanto] estava em vigor [a Lei. Nós, entretanto, descendemos de] judeus [apesar de] cristãos [...]. Estes foram chamados [...] "povo escolhido" de [...] e "homem verdadeiro" e "Filho do homem" e "semente do Filho do homem". Esta é a que o mundo chama de "a raça autêntica".
103    Estes são do lugar onde se encontram os filhos da câmara nupcial. A união é constituída neste mundo por homem e mulher, sede da força e da debilidade; no outro mundo a forma de união é muito diferente.
104    Nós os chamamos assim mas outras denominações superiores a qualquer dos nomes que se possam dar-lhes e superiores à [própria] violência. Os de lá não são um e outro, mas ambos são um só. O daqui é aquele que nunca poderá ultrapassar o sentido carnal.
105 Não é preciso que todos os que se encontram de posse do Todo se conheçam a si mesmos inteiramente. Alguns dos que não se conhecem a si mesmos não gozarão, é verdade, das coisas que possuem. Mas os que
houverem alcançado o próprio conhecimento, esses, sim, gozarão delas.
106    O homem perfeito não só não poderá ser detido como nem sequer poderá ser visto, pois se o vissem o reteriam. Ninguém estará em condições de conseguir de outra maneira esta graça, a [não] ser que se revista da luz perfeita e [se converta em homem] perfeito. Todo aquele que [se houver revestido dela] caminhará [...]: esta é a [luz] perfeita.
107    [E preciso] que nos façamos [homens perfeitos] antes de sairmos [do mundo]. Quem recebeu o Todo [sem ser senhor] destes lugares [não] poderá [dominar] naquele lugar; em vez disso, [irá parar no lugar] intermediário como imperfeito. Só Jesus conhece o fim deste.
108    O homem santo o é inteiramente, até mesmo no que toca a seu corpo, posto que se ao receber o pão ele o santifica — do mesmo modo que santifica o cálice ou qualquer outra coisa que recebe — como não fará santo também ao corpo?
109    Da mesma maneira que Jesus [fez] perfeita a água do batismo, também liquidou a morte. Por isso nós descemos — é verdade — até a água, mas não baixamos até a morte, para não ficarmos submersos no espírito do mundo. Quando este sopra faz sobrevir o inverno, mas quando é o Espírito que sopra faz-se verão.
110    Quem possui o conhecimento da verdade é livre; pois bem, quem é livre não peca, já que só peca quem é escravo do pecado. A mãe é a verdade, enquanto que o conhecimento é o pai. Aqueles aos quais não é permitido pecar, o conhecimento da verdade eleva os corações, isto é, os faz livres e os põe acima de todos os lugares. O amor,por seu lado, edifica, mas aquele que foi feito livre pelo conhecimento se faz de escravo por amor àqueles que ainda não chegaram a receber a liberdade do conhecimento; então este os capacita para fazer-se livres. [O] amor [não se apropria] de nada, pois como [irá apropriar-se de algo, se tudo] lhe pertence? Não [diz "isto é meu') ou "aquilo me pertence", [mas diz "isto é] teu".
111    O amor espiritual é vinho e bálsamo. Dele gozam os que se deixam ungir com ele, mas também aqueles que são alheios a estes, desde que os ungidos continuem [ao seu lado]. No momento em que os que foram ungidos com bálsamo deixarem de [ungir-se] e partirem, ficam exalando de novo mau odor os não ungidos que apenas estavam junto a eles. - O samaritano não deu ao ferido mais do que vinho e azeite. Isso outra coisa não é se não a unção. E [assim] curou as feridas, pois o amor cobre inúmeros pecados.
112    Os [filhos] que uma mulher dá à luz se parecem àquele que a ama. Se é o seu marido, parecem-se ao marido; se um adúltero, se parecem ao adúltero. Sucede também com freqüência que quando uma mulher se deita com seu marido por necessidade — enquanto seu coração está ao lado do adúltero com quem mantém relações — dá à luz o que tem de dar à luz com a aparência do amante. Mas vós, que estais em companhia do Filho de Deus, não ameis ao mundo e sim ao Senhor, de maneira que aqueles que vierdes engendrar não se pareçam com o mundo mas com o Senhor.
113    O homem copula com o homem, o cavalo com o cavá-lo, o asno com o asno: as espécies copulam com seus semelhantes. Desta mesma maneira se une o espírito com o espírito, o Logos com o Logos [e a luz com a luz. Se tu] te fazes homem, [é o homem quem te] amará; se te fazes [espírito], é o espírito que se unirá contigo; se te fazes como um dos de cima, são os de cima que virão repousar sobre ti; se te fazes cavalo, asno, cão, vaca, ovelha ou qualquer dos animais que estão fora e que estão abaixo, não poderás ser amado nem pelo homem, nem pelo espírito, nem pelo Logos, nem pela luz, nem pelos de cima, nem pelos do interior. Estes não poderão vir repousar dentro de ti e tu não farás parte deles.
114    Aquele que é escravo contra a sua vontade poderá chegar a ser livre. Aquele que depois de haver alcançado a liberdade pela graça do seu senhor se vendeu a si mesmo novamente como escavo, não poderá voltar a ser livre.
115    A agricultura [deste] mundo está baseada em quatro elementos: colhe-se partindo de água, terra, vento e luz. Também a economia de Deus depende de quatro elementos: fé, esperança, amor e conhecimento, Nossa terra é a fé, na qual deitamos raízes; a água é a esperança, da qual nos [alimentamos]; o vento é o amor, pelo [qual] crescemos; a luz [é] o conhecimento, pelo [qual] amadurecemos.
116    A graça é [...] o lavrador são [...] por cima do céu. Bem-aventurado é aquele que não atribulou uma alma. Este é Jesus Cristo. Ele veio ao encontro de todos os lugares sem onerar a ninguém. Por isso é feliz aquele que é assim, pois é um homem perfeito, já que é o Logos.
117    Perguntai-nos a respeito dele, pois é difícil expô-lo adequadamente. Como seremos capazes de realizar esta grande obra?
118    Como se irá conceder descanso a todos? Antes de mais nada, não se deve causar tristeza a ninguém, grande ou pequeno, crente ou não crente. Depois, há que proporcionar descanso àqueles que repousam no bem. Há pessoas que podem proporcionar descanso ao homem de bem. Ao que pratica o bem não lhe é possível proporcionar descanso a estes, pois não está em suas mãos; mas tampouco lhe é possível causar tristeza, ao não dar oportunidade a que eles sofram angústia. Mas o homem de bem às vezes lhes causa aflição. E não é que o faça deliberadamente, mas é a sua própria maldade o que os aflige. Aquele que possui uma natureza adequada causa prazer a quem é bom, mas alguns se afligem por isso ao extremo.
119    Um chefe de família se proveu de tudo: filhos, escravos, [gado], cães, porcos, trigo, cevada, palha, feno, [ossos], carne e bolotas. Era inteligente e conhecia o alimento (adequado) para cada qual. Aos filhos ofereceu pão, [azeite e carne]; aos escravos, azeite de rícino [e] trigo; aos animais [deu cevada], palha e feno; [aos] cães, ossos; [aos porcos] deu bolotas e [restos de] pão. O mesmo ocorre com o discípulo de Deus: se é inteligente, compreende o que é ser discípulo. As formas corporais não serão capazes de enganá-lo; ele se fixará na disposição de ânimo de cada qual e [assim] falará com ele. Há muitos animais no mundo que têm forma humana. Se fores capaz de reconhecê-los, deitarás bolotas aos porcos, enquanto que ao gado darás cevada, palha e feno; aos cães, ossos, aos escravos distribuirás alimentos rudimentares e aos filhos, o perfeito.
120    Há um Filho do homem e há um filho do Filho do homem. O Senhor é o Filho do homem, e o filho do Filho do homem é aquele que foi feito pelo Filho do homem. O Filho do homem recebeu de Deus a faculdade de criar. E ele tem [também] a de engendrar.
121    Quem recebeu a faculdade de criar é uma criatura; quem recebeu a de engendrar é um engendrado. Quem cria não pode engendrar, quem engendra não pode criar. Costuma dizer-se que "quem cria engendra", mas o que engendra é uma criatura. Por [isso] os que foram engendrados por ele não são seus filhos, mas [...]. O que cria atua [visivelmente] e ele mesmo permanece oculto: [...] a imagem. Aquele que cria [o faz] abertamente, mas o que engendra [engendra] filhos ocultamente.
122    [Ninguém poderá] saber nunca qual é [o dia em que o homem] e a mulher copulam — fora deles mesmos —, uma vez que as núpcias d[este] mundo são um mistério para aqueles que tomaram mulher. E se o matrimônio da poluição permanece oculto, tanto mais constituirá verdadeiro mistério o casamento impoluto. Este não é carnal, mas puro; não pertence à paixão, mas à vontade; não pertence às trevas ou à noite, mas ao dia e à luz. Se a união matrimonial se realiza a descoberto, fica reduzida a um ato de fornicação. Não só quando a esposa recebe o sêmen de outro homem, mas também quando abandona a sua alcova à vista [de outros], comete um ato de fornicação. Só lhe é permitido mostrar-se ao seu próprio pai, à sua mãe, ao amigo do esposo e aos filhos do esposo. Estes podem entrar todos os dias na câmara nupcial. Os demais que se contentem com o desejo, ainda que apenas seja o de escutar sua voz e de gozar de seu perfume e de alimentar-se dos restos que caem da mesa como os cães. Esposos e esposas pertencem à câmara nupcial. Ninguém poderá ver o esposo e a esposa, a não ser que [ele mesmo] venha a sê-lo.
123    Quando a Abraão [foi dado] ver o que teve de ver, circuncidou a carne do prepúcio, ensinando-nos [com isso] que é necessário destruir a carne [...] do mundo. Enquanto suas [paixões estão escondidas], persistem e continuam vivendo, [mas se saem à luz] perecem, [a exemplo] do homem visível. [Enquanto] as entranhas do homem estão escondidas, o homem está vivo; se as entranhas aparecem e saem dele, o homem morrerá. O mesmo ocorre com a árvore: enquanto sua raiz está oculta, deita brotos e [se desenvolve], mas, quando sua raiz se deixa ver, a árvore seca. Acontece o mesmo com qualquer coisa que tenha chegado a ser [neste] mundo, não só de forma manifesta como também oculta: enquanto a raiz do mal está oculta, este se mantém for-te; assim que se revela se desintegra e — logo que se manifestou-se desvanece. Por isso diz o Logos: "Já está posta a acha na raiz da árvore". Esta não podará, [pois] o que se poda brota de novo, mas cavará até o fundo, até arrancar a raiz. Mas Jesus arrancou de todo a raiz de todos os lugares, enquanto que outros [o fizeram unicamente] em parte. No que se refere a nós, todos e cada um devemos socavar a raiz do mal que está em cada qual e arrancá-la inteiramente do coração. Erradicamos [o mal] quando o conhecemos, mas, se não nos dermos conta dele, deita raízes em nós e produz seus frutos em nosso coração; assenhoreia e sede nós e faz-nos seus escravos; tem-nos presos em suas garras para que façamos aquilo que [não] queremos e [omitamos] aquilo que queremos; é poderoso porque não o reconhecemos e enquanto [está ali] continua agindo. A ignorância [é sua mãe [...]; a ignorância [está ao serviço de [...]; o que provém [dela] nem existe, nem [existe], nem existirá. [Mas aqueles que vêm da verdade] alcançarão sua perfeição quando toda a verdade se manifestar. A verdade é como a ignorância: se está escondida, descansa em si mesma; mas se se manifesta e é reconhecida, será objeto de louvor porque é mais forte do que a ignorância e do que o erro. Ela dá a liberdade. Já disse o Logos: "Se reconhecerdes a verdade, a verdade vos fará livres." A ignorância é escravidão, o conhecimento é liberdade. Se reconhecermos a verdade encontraremos os frutos da verdade em nós mesmos; se nos unirmos a ela, nos trará a plenitude.
124    Agora estamos de posse do que é manifesto dentro da criação e dizemos: "Isto é o só-lido e o cobiçável, enquanto que o oculto é débil e digno de desprezo". Assim ocorre com o elemento manifesto da verdade, que é débil e desprezível, ao passo que o oculto é o sólido e digno de apreço. Manifestos são os mistérios da verdade à maneira de modelos e imagens, ao passo que o quarto nupcial — que é o Santo dentro do Santo
— mantém-se oculto.
125    O véu ocultava no princípio a maneira como Deus governava a criação; mas quando se rasgar e aparecer o interior, esta casa ficará deserta, ou melhor, será destruída. Mas a divindade, em seu conjunto, não abandonará estes lugares [para ir-se] ao Santo dos Santos, pois não poderá unir-se com a [luz acrisolada] nem com a Pleroma sem [mácula]. Ela se [refugiará] melhor sob as asas da cruz e [sob seus] braços. A arca [lhes] servirá de salvação quando o dilúvio de água irromper sobre eles. Os que pertencerem à linhagem sacerdotal poderão penetrar na parte interior do véu com o Sumo Sacerdote. Por isso rasgou — se aquele não só pela parte superior, pois [senão] só se haveria aberto para os que estavam acima; nem tampouco se rasgou unicamente pela parte inferior, porque [senão] apenas se haveria mostrado aos que estavam abaixo. Mas rasgou-se de alto a baixo. As coisas de cima nos ficaram visíveis a nós que estamos embaixo, para que possamos penetrar no recôndito da verdade. Isso é realmente o apreciável, o sólido. Mas nós havemos de entrar ali através de debilidades e de símbolos desprezíveis, pois não têm valor algum diante da glória perfeita. Há uma glória acima da glória e um poder acima do poder. Por isso nos foi dado patentear o perfeito e o segredo da verdade. E o Santo dos Santos se [nos] manifestou e a câmara nupcial nos convidou a entrar.
Enquanto isto permanece oculto, a maldade está neutralizada, se bem que não tenha sido expulsa da semente do Espírito Santo, [pelo que] eles continuam sendo escravos da maldade. Mas quando isto se manifestar, então se derramará a luz perfeita sobre todos os que se encontrarem nela e [receberão] a unção. Então ficarão livres os escravos e os cativos serão redimidos.
126    [Toda] planta que [não] haja sido plantada por meu Pai que está nos céus [será] arrancada. Os separados serão unidos [e] cumulados. Todos os que [entrarem] na câmara nupcial irradiarão [luz], pois eles [não] engendram como os matrimônios que [...] atuam na noite. O fogo [brilha] na noite e se apaga, mas os mistérios destas bodas se desenvolvem de dia e [em plena] luz. Este dia e seu fulgor não têm ocaso.
127    Se alguém se faz filho da câmara nupcial, receberá a luz. Quem não a recebe enquanto se encontra nestas paragens, tampouco a receberá em outro lugar. Quem recebe essa luz não poderá ser visto nem detido, e ninguém poderá molestá-lo enquanto viver neste mundo o mesmo quando houver saído dele, [pois] já terá recebido a verdade em imagens. O mundo se converteu em éon, pois o éon é para ele plenitude, o é desta forma: manifestando-se a ele exclusivamente, não oculto nas trevas e na noite, mas oculto em um dia perfeito e em uma luz santa.

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